quarta-feira, 19 de março de 2014

A beleza de cada um

Tem a velha questão de onde reside ou o que gera a Beleza. Essa questão é imediatamente bipolarizada pela pergunta sobre se existe uma ou algumas réguas universais de beleza ou se a beleza é algo apenas individual (tipo a "questão de gosto" kantiana) ou cultural.

Acho importante reconhecer o que existe de "universal" (não no sentido metafísico mas no cognitivo, que é pra onde todos os universais humanos migraram) na percepção de beleza. Dizer que 'é bonito apenas o que dizemos que é bonito' dá poder demais à cultura, gera um determinismo cultural análogo ao determinismo linguístico (ou à forma mais radical dele, em que o pensamento é totalmente limitado pela língua -- o que contradiz francamente a sensação, comumente expressa por filósofos e literatos, de que as palavras não conseguem capturar direito as ideias).

Mas com a ressalva de que isso não se opera de maneira simples, com um ou dois princípios orientando a estética e juízos do tipo "tal coisa é tida como bonita pq obedece a esse princípio". Devem ser vários princípios cognitivos que orientam a percepção de beleza (a começar dos princípios de boa forma da Gestalt), junto com vários elementos da cultura (p. ex. a semelhança ou a filiação ou qualquer reverberação de outras formas reconhecidas naquela cultura). Esses princípios aparecem em diferentes graus, reforçados ou desafiados (por exemplo em composições que querem transmitir tensão, desequilíbrio ou em todos os casos de "beleza do feio"), todos misturados, na criação de formas específicas que, uma vez criados pelas mãos de algum artista, entram na disputa (do tipo "seleção natural") das formas que se consagram em alguma cultura (e depois em outras culturas, uma vez que as culturas interagem o tempo todo). Por exemplo, a forma dos sonetos ou dos haikai, ou do contraponto musical, ou dos pontos de fuga nos quadros.

Daí que as pessoas serem bonitas dependem, em larga medida, delas acharem e fazerem sua beleza. De terem espelho em casa, se olharem, se tocarem, encontrarem padrões de beleza em si mesmas, construírem pra si uma forma, se identificarem com ela. A lapidação dessa forma envolve aspectos externos (a escolha de roupas, de corte de cabelo, de maquiagem) mas envolve um monte de coisas sutis, como postura, expressões faciais e corporais, o encadeamento do discurso no movimento do corpo, etc. Esse processo de auto-construção é mais fácil pra alguns que pra outros, por disposições psicológicas diversas (envolvendo auto-estima, p. ex.) e porque as expectativas ou os gostos formais de alguém podem casar mais facil ou mais dificilmente com o corpo que ele habita (isso inclui todas as pessoas que tem um gosto para corpos moldado apenas pelo mercado de beleza corporal, mas cujos corpos, em princípio, funcionariam sob algum outro padrão formal).

Em resumo: sejam bonitos, encontrem as belezas em vós.

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